Estamos em tempos de grande visibilidade religiosa na política do Brasil graças à presença de um fundamentalista religioso à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Em questão de dias, o velho tema sobre a relação entre religião e Estado se renova e uma enxurrada de discursos são utilizados em massa principalmente pelas redes sociais. E, por mais que seja centenário tal debate, impressiono-me com o imenso mau-trato dado ao tema principalmente por boa parte dos mais esclarecidos e honestos progressistas do país. A visão de muitos marxistas sobre a posição de Marx acerca da religião é extremamente simplificada e identificada tipicamente com o bordão já desgastado de que ela é simplesmente “o ópio do povo” e fim de papo.
A trincheira reacionária e conservadora cavada no seio das massas revolucionárias pelas religiões ao longo da, denominada por Hobsbawn, “Era das Revoluções” ao longo do século XIX é uma verdade ainda em tempos atuais. Em larga medida, quando não vemos inúmeras instituições religiosas cumprindo esse papel, vemos tantas outras envolvidas em imensas engenharias sociais, financeiras, e anti-comunistas. Todavia, vira-e-mexe surgem movimentos ou expressões revolucionárias em meio justamente às religiões. A história de independência da América do Norte e da América Latina é composta de inúmeros revolucionários sacerdotes e a questão religiosa foi por vezes a voz libertária desses povos. A existência de organizações como a Juventude Universitária Católica, a Ação Popular, e a Teologia da Libertação – bem como a inserção relevante de clérigos católicos na luta operária como o caso do paraguaio Fernando Lugo e dos padres envolvidos com a revolução sandinista e com as Farc-EP, por exemplo, provoca-nos a necessidade de uma releitura tanto da análise marxista da religião quanto da tática revolucionária acerca do trato ao tema. A “quintessência”, portanto, da concepção de “religião é o ópio do povo” é simplificadora por demais e mais atrapalha do que ajuda na hora de se estabelecer as bases do argumento sobre o fenômeno religioso na política e na luta de classes.
Para não incorrer na “heresia” de se desconsiderar os textos clássicos do marxismo, primeiramente é importante explorarmos melhor esse papel narcótico apontado no célebre “a religião é o ópio do povo”. É do espírito da época, em seu sentido romântico alemão, com inúmeras tonalidades distintas, a identificação do papel da religião na sociedade pelo seu efeito narcótico. Kant, Feuerbach, e Hegel, muito antes de Marx, todos identificavam tal efeito e de maneira positiva. De uma forma ou outra, notavam que, em meio à amargura de uma vida em meio a um mundo insensível, a religião promove, por meio da espiritualidade, certos alívios como amor, fé e esperança. Mesmo os mais críticos, e por vezes os mais irônicos, como Feuerbach e Hess, identificavam que a droga religiosa era necessária, ainda que tenha por efeito colateral o vício da servidão social.
Marx, em seu texto “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel” (1844) concorda com a ambivalência do fenômeno religioso. Entretanto, ao darmos melhor atenção ao parágrafo onde se encontra a máxima de que a religião “é o ópio do povo”, de imediato nota-se que se trata de um pensamento muito mais complexo do que as pessoas costumam utilizar ao desenvolver suas críticas. Ainda que nesse texto Marx rejeita totalmente a religião, não descarta, porém, o caráter dialético que ela possui: “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo” (MARX, 1843-4, p. 1).
Se levarmos em consideração o conjunto da obra de 1844, Marx está muito mais próximo ao movimento hegeliano de esquerda, que denunciava a alienação provocada pela religião e a busca em considerá-la um fenômeno humano, que ao entendimento da Ilustração, que denunciava a conspiração clerical – e como tem, em dias atuais, aqueles que confudem e misturam essas duas formas em seus argumentos quando o assunto é religião! – Porém, ainda que, sem dúvida, dialética, não se tratava de uma análise classista e nem tampouco histórica. Tal análise começa a ocorrer na literatura marxista, de fato, na “Ideologia Alemã”, de 1846. Eis que nessa obra é que a observação da religião enquanto coisa social e histórica se inicia de fato. E o que mais chama a atenção: Marx, como método, coloca a religião como uma das inúmeras formas da ideologia de um povo e necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais. Aponta, portanto, o caminho da análise: o que é a religião, ou no que ela acredita ou se é verdade o que ela promete pouco importa à luz das relações sociais. Mas, por ser coisa social, o que importa é compreender que qualquer perturbação histórica das condições sociais provoca, ao mesmo tempo, a perturbação das concepções e das representações dos homens e, como corolário, também das representações religiosas. Isso explica, por exemplo, porque os sacerdotes tiveram papéis tão distintos no século XIX na Europa e nas Américas - o papel obscurantista e reacionário ao longo da Primavera dos Povos e o papel libertador e revolucionário nas lutas por Independência na América Latina.
Tudo leva a crer que Marx dá o assunto por encerrado em “Ideologia Alemã”, já que depois não apresenta nenhum outro estudo mais desenvolvido sobre a religião – apenas algumas ideias sem maior cuidado n'O Capital e nos Grundrisse. Pelos textos de Karl Marx, unicamente, notamos que a conclusão acerca das religiões vai muito mais além do que a identificação de seu papel narcótico. Em outras palavras, Marx se preocupou mais com o “vale de lágrimas” que com os “consoladores”. E, no tocante à teologia, ela deve ser observada quanto ao seu uso político, possível criador tanto de “ murmuro e ranger de dentes” quanto de saciar os “sedentos e famintos por justiça”.
Tendo esclarecido esse ponto, devemos somar nossas observações com a contribuição ímpar de Engels para se abordar a religião de maneira materialista-histórica-dialética: a visão da luta de classes. Diferentemente de seus contemporâneos – e de muitos outros que vieram depois até os dias atuais – Engels não olha para a religião enquanto quintessência a-histórica, mas como uma forma cultural e de massas. Observa que a religião não se trata necessariamente de um representante conservador no duelo iluminista entre revolução e reação, como foi o caso dos protestantes que usaram de sua religião para combater de maneira revolucionária os materialistas que estava com os Stuarts na Inglaterra no século XVII. E vai mais além, Engels longe de conceber a Igreja enquanto uma entidade homogênea, identifica sua característica de massas e sua divisão de acordo com seus componentes de classe. Demonstra Engels que, historicamente, a Reforma Protestante, por exemplo, foi fruto da luta de classes. Um alto clero reacionário em conflito com um baixo clero e um movimento campesino revolucionário, culminando em um rompimento. Aponta, inclusive, que as teses de Lutero tem mais importância econômica que teológica – uma vez que foram usadas para enfrentar os pesados impostos clericais da Igreja Católica sobre a população germânica essencialmente campesina.
Engels, ainda que ateu e anti-clerical ferrenho, também reconhecia positivamente o papel narcótico da religião. Porém, identificou que ao mesmo tempo em que a religião pode cumprir um papel de legitimação da ordem estabelecida, ela pode, em determinadas circunstâncias sociais, exercer um papel crítico, contestador e até mesmo revolucionário. Chegou, inclusive, a estabelecer um surpreendente paralelo – que, contemporaneamente, Hugo Chávez insistiu em resgatar – entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno. Segundo o alemão, os primeiros cristãos eram membros das mais baixas classes sociais na pirâmide social em suas sociedades: escravos, homens livres privados de direitos, camponeses endividados, e assim por diante. A diferença entre os cristãos primitivos e os socialistas modernos é o momentum da libertação: enquanto que para os primeiros seria para além dessa vida, para os segundos o momento é o agora.
Friedrisch Engels analisou o fenômeno religioso dando uma abordagem mais utilitarista na luta de classes, identificando o potencial de protesto da religião. Distinguiu-se em sua abordagem ao da Ilustração e ao da abordagem hegeliana – essa última adotada por Marx em quase toda sua literatura – apresentando a necessidade dos revolucionários sempre identificar o uso que as classes sociais fazem de suas religiões.
Karl Kautsky, antes de renegar o marxismo segundo Lênin, teceu inúmeros ensaios sobre o que considerava os precursores do socialismo moderno. Seriam esses precursores justamente algumas correntes religiosas que propunham uma sociedade distributiva – portanto, comunista, ainda que utópica e muito distinta do comunismo científico e operário moderno. Na visão kautskysta, os fundamentos religiosos são utilizados pelas classes sociais para justificar um posicionamento político e não necessariamente, portanto, tendo a ver com sentido teológico que a religião dá a eles. Por exemplo, a Santa Inquisição, baseada nos fundamentos apocalípticos, seriam na verdade expressões de desespero de uma classe dominante na manutenção de seu status quo diante de uma classe oprimida aspirando ideais comunistas que aprenderam com a própria vida religiosa. Em seu livro sobre Thomas More, ilustra a transformação que as próprias igrejas foram submetidas à medida que o mercantilismo ia ganhando força no mundo europeu. Segundo Kautsky, o autor de “Utopia” seria um legítimo e último representante de um catolicismo popular, velho e feudal – completamente diferente do mercantilista, elitista e novo catolicismo jesuítico moderno. More denunciava a brutal proletarização dos camponeses com a destruição da Igreja Católica Feudal, bem como denunciava a expropriação de terras comunitárias pela Reforma Protestante. Ao mesmo tempo, combatia as correntes autoritárias que haviam na Igreja propondo o fim do celibato clerical, a ordenação de mulheres, e um processo eleitoral onde as comunidades escolheriam seus padres.Kautsky, portanto, confirma a validade dos argumentos de Marx e Engels para o século XX afirmando que, além de ser fruto das relações sociais, a religião sofre transformações com a luta de classes identificando nessa contradição a necessidade de se evitar o ateísmo na elaboração do pensamento marxista contemporâneo.
Em “Socialismo e Religião”, de 1905, Lênin inicia seu texto com um duro discurso sobre o papel da religião na sociedade. Identifica e reforça todos os argumentos da Ilustração sobre a religião, acrescentando que há uma névoa obscura que faz com que a religião oprima também o espírito do trabalhador. Identifica o papel narcótico da religião, re-afirmando a velha máxima da religião enquanto ópio do povo, mas não a vê positivamente - a vê como uma cachaça ruim onde os escravos do capital afogam sua humanidade e suas reivindicações por uma vida minimamente digna. Seria então um dos papéis dos socialistas provocar o rompimento que o trabalhador tem com a névoa religiosa a fim de partir para a construção de um paraíso na terra, no agora. Entretanto, há uma forma para se fazer isso: jamais de "modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa 'a partir da razão', fora da luta de classes". Para Lênin, é um absurdo querer dissipar os preconceitos religiosos por meio unicamente de propaganda - uma estreiteza burguesa esquecer que o jugo religioso é fruto do jugo econômico. Como palavra de ordem, Lênin define que a posição dos comunistas em relação à religião é a defesa de que ela seja um assunto privado. Uma luta onde se defenda o direito de crença e de não-crença dos trabalhadores, porém rompendo qualquer relação entre a religião e o Estado (inclusive qualquer benefício econômico, fiscal, ou simbólico). E, para o partido comunista, onde esse assunto não pode ser privado, jamais se declarar um partido ateu - o que teria como consequência o impedimento de filiação de religiosos. Pelo contrário, permitir que a "incoerência cristã" e os "vestígios de velhos preconceitos" ingressem nas fileiras partidárias onde a questão religiosa não ocupa o primeiro lugar e há uma concepção científica na ordem da interpretação do mundo. E, por fim, alerta que sempre que a questão religiosa não é tratada pela lógica da luta de classes, a burguesia reacionária trata de atiçar a hostilidade religiosa. Em outras palavras, sempre que se perde o referencial classista, a burguesia manipula as massas de trabalhadores para defenderem suas posições em nome do combate à ameaça de destruição de suas crenças.
O antídoto seria justamente aproximar o fiel a unirem forças contra a escravidão proporcionada por um mundo onde ele mesmo identifica como iníquo, convidando a construir o paraíso que ele acredita hoje, aqui na terra. Identificar a luta de classes que há na própria religião e provocar a organização proletária. Evitar a "estreiteza burguesa" de considerar o jugo religioso como algo à parte do jugo econômico - coisa que acontece sempre que se combate a religião por meio unicamente da propaganda. Deve-se semear o combate ao fundamentalismo religioso dentro das próprias religiões, coisa que fará com que o próprio religioso entenda a opressão que esse fundamentalismo provoca e se manifeste no sentido de, reforçando suas crenças, derrube o opressor fundamentalista. Expropriar do burguês a sua capacidade de mobilizar as massas em nome da fé - conscientizando as massas que a melhor defesa de suas religiões se dá por meio de uma sociedade livre, de respeito à todas as crenças, e socialista.
ENGELS, F. "Anti-Dühring". São Paulo:Paz e Terra, 1977.
ENGELS, F. "Contribution to the History of Primitive Christianity” In. K. Marx e F. Engels "On Religion" Londres: Lawrence&Wishart, 1960.