23 fevereiro 2015

O que mais querem que o ator faça? Oscar 2015.


No mundo do futebol, na década de 1990, havia uma imensa crise de público em praticamente todo o Brasil. Coincidentemente, explodiam índices e mais índices de audiência para os jogos da liga americana de basquete, NBA. Era época do fenomenal Chicago Bulls de Jordan, Pippen, Grant, Armstrong, e outras feras do búfalo da cidade dos ventos. No vôlei, outro fenômeno: mudanças significativas nas regras transformaram o jogo para uma velocidade de videoclipe. Fim da necessidade da bola estar em "vantagem" para se confirmar um ponto, fim da zona restrita de saque, foram mudanças consideradas drásticas e que fizeram com que o público voltasse para as quadras. Logo, os intelectuais da bola chegaram em uma conclusão: o futebol tem crise de público porque são poucos os gols. A violência e a precaridade dos estádios nem sequer foi cogitada nessa época. Somente uma década depois que veio a surgir o Estatuto do Torcedor e as alvissareiras transformações dos estádios. 

O que se viu depois foi um festival de horrores no futebol: a bola se tornou mais rápida, goleiro não podia pegar com as mãos a bola mais do que uma vez (que ainda bem foi abolida essa regra ridícula e substituída por outra um pouco menos ilógica que proíbe o goleiro de pegar com as mãos as bolas recuadas por jogador do próprio time), aumento da distância entre as traves, e outras ideias tenebrosas. Institucionalizou-se, até, o erro do árbitro como parte do jogo. Pois, somente na Copa do Mundo do Brasil, 2014, é que medidas tecnológicas para diminuir o erro humano na decisão do árbitro foi introduzido no futebol, sendo que, por exemplo, no futebol americano já são introduzidas tais medidas desde a década de 1980. Zetti, goleiro ídolo do São Paulo na época brincou sério em uma entrevista para a Rede Globo dizendo: - "o quê mais querem que o goleiro faça?  Daqui a pouco vão tirar o goleiro do futebol". 

Enfim, esse festival de horrores que foi fruto da genialidade toda dos intelectuais da bola de que o problema era a escassez de gol foi a primeira coisa que me veio à lembrança quando vi pela segunda vez, dois anos consecutivos, na premiação do Oscar o prêmio de melhor ator ir para aquele que mais transformou o seu próprio corpo. Em 2014, ficou nítido que o critério que a Academia de Hollywood adotou para sua escolha para o prêmio de Melhor Ator foi quem mais maltratou o próprio corpo em busca da verdade cênica. Matthew McConaughey (Clube de Compras Dallas, 2014) concorreu com Christian Bale (Trapaça, 2014), ambos com transformações físicas extremas. Venceu McConaughey, que foi o que emagreceu assustadoramente para fazer seu personagem em fim de sua vida por causa da AIDS. 2015, o critério se repetiu e o prêmio foi para Eddie Redmayne (A Teoria de Tudo, 2015), interpretando o físico Stephen Hawking.

É claro que McConaughey teve um trabalho fenomenal em 2014. Tudo que ele fez foi muito bom. Veja a participação dele no filme "O Lobo de Wallstreet" e logo se vê que mereceu todas as premiações que teve. O problema não está no ator, mas na academia que valoriza o pior aspecto dessa forma de construção do personagem. Este ano, as interpretações estavam mais equilibradas. Michael Keaton (Birdman, 2015), Benedict Cumberbath (Jogo da Imitação, 2015), Steve Carrell (Foxcatcher, 2015) tiveram atuações formidáveis do começo ao fim de seus filmes. Correndo atrás, mas com não tão boa desenvoltura, foi a boa atuação de Bradley Cooper (Sniper Americano, 2015). Redmayne, porém, não tem uma atuação tão destacada até que seu personagem atinge a total deformação de seu corpo por causa de sua doença motora degenerativa. Somente quando há tamanha deformação é que Redmayne brilha e comove o espectador. Aliás, o filme é muito mais um romance água com açúcar que enrola até que seu ápice seja justamente a total degeneração muscular de Hawkings. As ideias que Hawkings teve que o fizeram mundialmente reconhecido são muito superficialmente pinceladas e um enfoque sobre o ateísmo do físico foi abordado de maneira bastante boba. O diferencial, portanto, para a Academia foi a transformação do próprio corpo do ator. 

Em Birdman, Iñarritu brinca e provoca essa busca insana por uma verdade que vá além da verdade cênica. (ATENÇÃO: SPOILER) Tanto que transforma o ato do ator que atira de verdade em seu próprio nariz em um sequência de cenas patéticas logo na sequência do gesto imbecil. Aliás, todas as tentativas de ir além da verdade cênica é tratada como patetice, por exemplo, em todos os momentos da atuação do personagem de Edward Northon (FIM DO SPOILER). Concordo com Iñarritu. O que mais querem que o ator faça? Se mate de verdade para construir um personagem que morre em cena? 

A crítica deve valorizar o processo criativo do ator em sua construção do personagem. Nada de valorizar esquisitices como a do ator que não sai de seu personagem até que seu trabalho termine. Aliás, que desagradável que é a pessoa que não deixa seu personagem no palco ou no set de gravação. O ator sofre e muito quando tem que mudar seu corpo para dar mais verdade ao seu personagem. Mas tudo tem técnica e tecnologia para poupar o ator de situações que são análogas à auto-mutilação.

Valorizo muito mais o ator gordo que consegue se expressar e interpretar um magro com tamanha verdade que o público sequer nota que se trata de uma pessoa obesa. Um dos maiores desafios do teatro brasileiro, apenas para exemplificar, justamente se encontra em dar verdade para Sônia em "Valsa n. 6" de Nelson Rodrigues. Afinal, uma garota de 15 anos não tem o peso da experiência para ser capaz de boa interpretação de uma alma aflita e uma mulher de 30 anos ou mais dificilmente consegue convencer que tem apenas 15 anos de idade e que é Sônia nos palcos. Quase todos os diretores falham miseravelmente. Mas quando uma atriz consegue atingir a verdade cênica, torna-se um monólogo dos mais brilhantes que o público já tenha assistido. Creio que o cinema tem muito mais condições de atingir esse resultado que o teatro. Portanto, preocupa-me esse gosto da academia de valorizar a mutilação do ator em busca de sua verdade cênica.