03 julho 2008

O último bolinho



Da série sobre coisas corriqueiras que, quando resolvemos prestar atenção, ou ficamos perplexos ou, no mínimo, pensativos. Estava eu e a moça, bela moça, em uma esquina dessas de promoções: um tantão de bolinhos por um tantinho de dinheiro, e grátis um cafezinho. Tempos difíceis, não podia esbanjar. Mas era muito bela a moça. Valia gastar mais do que eu tinha para fazer de mim um pouco mais atraente aos olhos daquela bela donzela. Infelizmente, o dono do estabelecimento não era tão romântico quanto meus desejos, e o dinheiro deu para apenas sete bolinhos e um café para a moça. Lembrando que o meu estava na promoção do café gratuito para a promoção de bolinhos.


Em meio a um delicioso assunto, daqueles em que quase esquecemos da comida e atacamos querer comer aquilo que o outro está formulando em pensamentos, fui notando os bolinhos, lentamente, sendo consumidos. E, o número ímpar favorece algumas brigas, algumas rusgas, discussões e, enfim, um moço feito eu voltando frustrado e sozinho para casa. Esse maldito número ímpar é causador de conflitos internacionais, mataram um, e a Primeira Guerra Mundial começou. Por conta de um que queria um mundo inteiro a si submisso, outra ainda maior se deu início. Por conta de um mundo unido e proletário, uma guerra fria começou. Até o mundo bipolar, na verdade era ímpar na história da humanidade. Entre iraquianos, um governo americano querendo impor uma única verdade. Por conta de uma fórmula, milhares de vidas ceifadas graças ao resultado daquele veneno nuclear. O tal do número ímpar já desfez lares felizes. Ao acrescentar uma terceira, o par se dividiu. O amor de dois do mesmo sexo é tratado como um, e assim não podem contrair nupcias. A aliança, que resume dois seres em um, é lapidado em um metal que, se esticado, vai até o infinito, e por ele pessoas matam ou perdem sua identidade. Por cinco cartas, apenas um jogador é consagrado vencedor no pôquer, causando outros tantos desespero, desatres, ou falência financeira.


E por conta de sete bolinhos se iniciou meu desespero. Na medida em que nossos assuntos iam se entrecortando, formulando, passando, ia restando um insistente e único bolinho no prato das diferenças. - E agora? - Pensava eu quando ainda tinham apenas três daqueles causadores de discórdias. Se eu simplesmente o comesse, ela me consideraria mesquinho ou egoísta o suficiente para nunca mais querer me ver. Se eu deixasse ela comê-lo, poderia me considerar passivo demais para que eu seja digno de seu valor. Quando restaram três bolinhos, meu desespero era ainda apenas metafísico, mas veio uma bocada dela em um, e a minha no outro. O ímpar maior chegara. Meu desespero se tornava objetivo. Catava migalhas na solidão de minha alma. Se eu aceitasse que ela simplesmente atacasse o último bolinho, não honraria mais as calças que eu vesti minha vida inteira. Se ela simplesmente aceitasse que eu o fizesse, mais uma que não tem amor próprio o suficiente para enfrentar as dificuldades da vida à dois. E como perturbava-me aquele último bolinho.


Finalmente, a hora de iniciar a guerra chegou. Ali estavam lançados os dados, e eu pronto para o combate. Discretamente estava eu com guardanapo como se uma espada, ela com um sorriso como se uma mira de perito atirador. Mas era realmente fantástica a moça, e como eu era bobo. Além de rápida, não era ela nem um nem outro na guerra dos machismos e convenções sociais. Antes que eu esboçasse qualquer reação, se propôs pagar a conta. E o bolinho, simplesmente ela dividiu ao meio ante de me dar aquele beijo arrebatador.

Um comentário:

Unknown disse...

muito boaaaaa!!!!