Imaginem o seguinte personagem de novela. O desespero de não ter dinheiro, de ter rejeição total familiar. Soma-se ainda a nenhuma educação seja social e muito menos sexual. Por fim, faça a ligação de que todos esses problemas existem com uma única pessoa. Perfeito, temos a mocinha da novela. Ela terá uma trajetória marcada pela desgraça, luta, dificuldade, tormentos mil, enfim, uma personagem a qual todos irão torcer por ela até o último capitulo da novela. E, mesmo cometendo verdadeiras atrocidades, mesmo assim, todos compreendem quando ela resolve assassinar o que houve de mais bonito com o amor dela com o canastrão da novela, invariavelmente casado e com completo desprezo pelo ser humano. Assassina a coisa mais significativa desse meio amor, pois a total falta de um bom acompanhamento psicológico e a exclusão social imposta a deixou com seriíssimos problemas psicopatológicos. Ou seja, realmente pouco importa para o enredo da novela se é um pires ou se é o gato de estimação pertencente a uma quase extinta raça no mundo felino. Ela irá fazer isso, e haverão personagens na novela que simplesmente irão a condenar, sem maiores ponderações, e aumentarão ainda mais sua exclusão. Imputando-na inclusive uma total marginalidade. Surgirão então os malvadões dessa novela. Aqueles que fazem com que a mocinha sofra, cada vez mais. Esses serão simplesmente odiados pelos telespectadores dessa novela, não importando o que façam.
Eis que no meio da trama, a mocinha, num total ato de desespero, comete um crime e vai para o xadrez. A novela então toma notoriedade. Os malvadões da novela pisoteiam, mentem, aumentam a história, esquece-se que mesmo que o crime seja uma atrocidade da natureza, coisa realmente indignante, mesmo assim, ainda há o ser humano por trás de tudo isso. Mas o telespectador não se deixa se enganar. Sofre junto com a mocinha a dor do arrependimento dela pelo crime cometido. Entendem, esses telespectadores, que é possível uma pessoa errar, hediondamente, mas mesmo assim, se arrepender e se tornar digno de perdão. E o ódio aos malvadões dessa novela toma conta e encoleriza todos os fieis telespectadores. Como podem ser tão vis esses malvadões? Como podem ser tão baixos? Tão asquerosos? "Ela cometeu um crime hediondo, e já está pagando por isso!" pensam sabiamente os telespectadores. O sentimento de culpa da mocinha já é um cárcere muito mais cruel que a jaula em que colocaram-na. E os malvadões, que coisa cruel, debocham, criam e alimentam pensamentos tão mesquinhos que chegam até a imaginar a mocinha numa condição ainda pior. Flertam desumanas penas de morte para a mocinha por conta do crime hediondo que essa cometera. Mas o telespectador é sagaz e separa o joio do trigo, ele sabe que a mocinha é antes de tudo, ser humano. Monstros são os malvadões, que a condenam ainda mais do que o confinamento que ela já está presa, seja em seu âmago, seja na cela da cadeia.
Pois bem, acabou a novela e começou o jornal. A primeira notícia é sobre uma mulher que, com seriíssimos problemas psicopatológicos, pagou para que matasse o seu filho recém-nascido, concebido durante um ato de entrega dela a um canastrão cujo só descobrira que ele era casado no dia do nascimento do menino. O jornal lança imagens chocantes. A criança estava num saco plástico boiando numa famosa lagoa de Belo Horizonte graças a um pedaço de madeira amarrado. O telespectador, exatamente o mesmo que a poucos minutos havia assistido a novela, desliga a televisão e comenta com a sua família: - “Essa mãe deveria ser amarrada, posta em um saco plástico, e jogada num rio com piranhas, só para ver o que é bom!”. E todos, na sala de jantar, concordam. Vão à mesa comer e ainda comentam coletivamente: - “Tomara que apodreça na cadeia!”.
Definitivamente, a arte peca por não conseguir reproduzir a vida. Ósculos e amplexos.
4 comentários:
Valeu pelo manual de "escrivinhamento" de novelas :)
atualiza!!!!!!!!!!!!
rsrs
bjos
Hahahahahaha
Texto muito criativo... certeza de boas gargalhadas!
Parabéns!
=)
Este eu demorei pra comentar, mas a genialidade usada por tí ao produzir esta crônica me deixou de queixo caído.
De fato temos dois pesos e duas medidas, até mesmo eu, ao assistir a tal notícia me peguei imaginando a mãe na mesma situação em que colocara a filha, daí consegui ver como somos vulneráveis a pré-julgamentos perante uma imagem chocante.
De fato tive que parar e pensar duas vezes sobre o ocorrido, não que eu concorde com o ato desesperado desta mulher, mas condená-la à forca sem ao menos entendermos todas as entrelinhas que rondam este fato é uma atitude arbitrária.
Gostei muito da forma como a crônica me provocou....
Mais uma vez, parabéns pelo blogg!!!
Beijos
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