Como é difícil escrever sobre a crônica de Zeca Camargo! Ao mesmo tempo em que não vi desrespeito com o falecido Cristiano Araujo e nem com os fãs desse cantor, vi um baita desrespeito com o povo brasileiro. Mas, para isso, preciso desconstruir o desrespeito que eu não vi para demonstrar o desrespeito que vi.
Lutamos tanto por uma televisão mais crítica, com conteúdos mais edificantes. E quando surge uma crítica, que bem ou mal elaborada sempre é um convite à reflexão, logo ela é absurdamente atacada e mal interpretada. Ainda que Zeca tenha pesado a mão, sobretudo quando compara os livros de colorir enquanto reflexo de ausência de cultura, a crítica nos convida a refletir o próprio fenômeno da indústria de entretenimento. Trocando em miúdos: de tantas coisas que podemos debater sobre essa crônica, definitivamente não é sobre Cristiano Araujo que ele estava falando. Cristiano Araujo serve de ilustração para a reflexão que Zeca propôs. Houve escolhas muito mais desrespeitosas e infelizes do que se utilizar de um recém-falecido para se dizer o que pensa.
O primeiro vídeo que encontrei no Youtube com a crônica em sua íntegra já decreta: "Zeca Camargo fala mal de Cristiano Araujo - Falta com respeito aos familiares e fãs" (sic). Mas não foi o que eu vi. Pelo contrário, logo no começo do vídeo/crônica, Zeca Camargo reconhece a importância de Cristiano Araujo e que o fato dele não ser, ao mesmo tempo, capaz de comover multidões ainda que desconhecido pelos grandes centros é um fenômeno de um país repleto de cantores talentosos e com dimensões continentais. Ou seja, ele trata com respeito Cristiano Araujo, reconhece seu talento, lamenta a tragédia, mas se impressiona com a comoção nacional. O que impressionou Zeca Camargo é a necessidade das massas pela busca de sua catarse - definida aqui por Zeca Camargo como algo que une um povo pela emoção.
Aristóteles, em sua Poética, defende a catarse, definindo-a enquanto uma ocasião em que os sentimentos de um conjunto de pessoas são liberados, dizendo que tais ocasiões são fundamentais para que os sentimentos reprimidos não se tornem perniciosos. Como exemplo de ocasião de liberação de sentimentos, temos os momentos emocionantes do teatro ou do cinema, bem como temos os funerais. Zeca Camargo escolheu o que ele chamou de grandes funerais como um momento necessário de catarse - enquanto uma "forma de purificação" (sic). Nesse momento, cita ele que cada geração teve sua catarse com funerais como o de Kurt Cobain, Cazuza, princesa Diana, e Michael Jackson. Mas, Cristiano Araujo, relativamente desconhecido arrastar uma multidão em seu funeral de igual maneira que um grande conhecido como Airton Senna ou Eduardo Campos? - é com essa interrogação que a crítica começa a desandar.
A coisa geralmente desanda quando a crítica opta por uma escolha infeliz. No caso, escolher para ilustrar sua crônica os livros de colorir. A coqueluche que está sendo tais livros em todo o mundo e igualmente no Brasil é constatada com estranheza na crítica de Zeca. Segundo ele, dentre uma série de problemas, tais livros "destacam a pobreza da alma cultural brasileira". E que, duvidando que tenha algo de valor cultural em tais livros, a coqueluche desses livros revelam a ausência de referências culturais para o povo brasileiro.
É equivocado dizer que não temos referências culturais em tempos atuais. Aliás, sendo Zeca Camargo alguém que está fazendo uma crônica crítica em uma televisão, quando faz essa afirmação acaba por desconsiderar inclusive a si próprio. Não há um brasileiro sequer que não tenha uma opinião formada de que temos como grandes ícones culturais e vivos como Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Caetano, Gil, e tantos outros. Então, temos referências culturais e de sobra reconhecidas e consagradas pelas massas. E olha que estou falando por enquanto somente da limitada cultura elitizada. A cultura de massas e a cultura popular é imensa e bastante referenciada pelo povo brasileiro. Colocar tudo isso em um pacote e comparar enquanto pobreza cultural por se tornar um fenômeno livros de colorir - e que não é exclusividade brasileira, trata-se de um fenômeno mundial - é um grande exagero e soa como desrespeito.
Por fim, Zeca elabora uma provocação interessante, porém recorrente: os ídolos de um produto só. Por mais que se possa concordar com seu posicionamento - ou discordar, o que daria um outro post imenso como esse - a questão é que não se trata de uma escolha adorarmos falsos herois. Dizer que precisamos sim de herois de verdade é clamar para a indústria de entretenimento justamente que fabrique mais e mais pobreza cultural. Não ataca o maior inimigo da verdadeira cultura que é justamente a indústria do entretenimento. Quando faz uma imensa crônica como essa e não se posiciona contra quem elabora o conteúdo alienante e joga para a geral a responsabilidade de estar alienado, desrespeita quem é vítima e não quem é o autor do crime.
Portanto, há uma série de desrespeitos na crônica de Zeca Camargo. Mas acredito que nenhum especificamente pelo o que ele está sendo acusado, ou seja, o único que não foi desrespeitado foi Cristiano Araujo. Porém, a velha e estúpida indústria do entretenimento decidiu explorar ao máximo a polêmica mais fraca, mas a mais chamativa. E assim continuamos alienados.