29 junho 2015

Zeca Camargo não atacou ou sequer desrespeitou Cristiano Araújo. Pior, desrespeitou a todos!




Como é difícil escrever sobre a crônica de Zeca Camargo! Ao mesmo tempo em que não vi desrespeito com o falecido Cristiano Araujo e nem com os fãs desse cantor, vi um baita desrespeito com o povo brasileiro. Mas, para isso, preciso desconstruir o desrespeito que eu não vi para demonstrar o desrespeito que vi.

Lutamos tanto por uma televisão mais crítica, com conteúdos mais edificantes. E quando surge uma crítica, que bem ou mal elaborada sempre é um convite à reflexão, logo ela é absurdamente atacada e mal interpretada. Ainda que Zeca tenha pesado a mão, sobretudo quando compara os livros de colorir enquanto reflexo de ausência de cultura, a crítica nos convida a refletir o próprio fenômeno da indústria de entretenimento. Trocando em miúdos: de tantas coisas que podemos debater sobre essa crônica, definitivamente não é sobre Cristiano Araujo que ele estava falando. Cristiano Araujo serve de ilustração para a reflexão que Zeca propôs. Houve escolhas muito mais desrespeitosas e infelizes do que se utilizar de um recém-falecido para se dizer o que pensa.

O primeiro vídeo que encontrei no Youtube com a crônica em sua íntegra já decreta: "Zeca Camargo fala mal de Cristiano Araujo - Falta com respeito aos familiares e fãs" (sic). Mas não foi o que eu vi. Pelo contrário, logo no começo do vídeo/crônica, Zeca Camargo reconhece a importância de Cristiano Araujo e que o fato dele não ser, ao mesmo tempo, capaz de comover multidões ainda que desconhecido pelos grandes centros é um fenômeno de um país repleto de cantores talentosos e com dimensões continentais. Ou seja, ele trata com respeito Cristiano Araujo, reconhece seu talento, lamenta a tragédia, mas se impressiona com a comoção nacional. O que impressionou Zeca Camargo é a necessidade das massas pela busca de sua catarse - definida aqui por Zeca Camargo como algo que une um povo pela emoção.

Aristóteles, em sua Poética, defende a catarse, definindo-a enquanto uma ocasião em que os sentimentos de um conjunto de pessoas são liberados, dizendo que tais ocasiões são fundamentais para que os sentimentos reprimidos não se tornem perniciosos. Como exemplo de ocasião de liberação de sentimentos, temos os momentos emocionantes do teatro ou do cinema, bem como temos os funerais. Zeca Camargo escolheu o que ele chamou de grandes funerais como um momento necessário de catarse - enquanto uma "forma de purificação" (sic). Nesse momento, cita ele que cada geração teve sua catarse com funerais como o de Kurt Cobain, Cazuza, princesa Diana, e Michael Jackson. Mas, Cristiano Araujo, relativamente desconhecido arrastar uma multidão em seu funeral de igual maneira que um grande conhecido como Airton Senna ou Eduardo Campos? - é com essa interrogação que a crítica começa a desandar.

A coisa geralmente desanda quando a crítica opta por uma escolha infeliz. No caso, escolher para ilustrar sua crônica os livros de colorir. A coqueluche que está sendo tais livros em todo o mundo e igualmente no Brasil é constatada com estranheza na crítica de Zeca. Segundo ele, dentre uma série de problemas, tais livros "destacam a pobreza da alma cultural brasileira". E que, duvidando que tenha algo de valor cultural em tais livros, a coqueluche desses livros revelam a ausência de referências culturais para o povo brasileiro.

É equivocado dizer que não temos referências culturais em tempos atuais. Aliás, sendo Zeca Camargo alguém que está fazendo uma crônica crítica em uma televisão, quando faz essa afirmação acaba por desconsiderar inclusive a si próprio. Não há um brasileiro sequer que não tenha uma opinião formada de que temos como grandes ícones culturais e vivos como Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Caetano, Gil, e tantos outros. Então, temos referências culturais e de sobra reconhecidas e consagradas pelas massas. E olha que estou falando por enquanto somente da limitada cultura elitizada. A cultura de massas e a cultura popular é imensa e bastante referenciada pelo povo brasileiro. Colocar tudo isso em um pacote e comparar enquanto pobreza cultural por se tornar um fenômeno livros de colorir - e que não é exclusividade brasileira, trata-se de um fenômeno mundial - é um grande exagero e soa como desrespeito.

Por fim, Zeca elabora uma provocação interessante, porém recorrente: os ídolos de um produto só. Por mais que se possa concordar com seu posicionamento - ou discordar, o que daria um outro post imenso como esse - a questão é que não se trata de uma escolha adorarmos falsos herois. Dizer que precisamos sim de herois de verdade é clamar para a indústria de entretenimento justamente que fabrique mais e mais pobreza cultural. Não ataca o maior inimigo da verdadeira cultura que é justamente a indústria do entretenimento. Quando faz uma imensa crônica como essa e não se posiciona contra quem elabora o conteúdo alienante e joga para a geral a responsabilidade de estar alienado, desrespeita quem é vítima e não quem é o autor do crime.

Portanto, há uma série de desrespeitos na crônica de Zeca Camargo. Mas acredito que nenhum especificamente pelo o que ele está sendo acusado, ou seja, o único que não foi desrespeitado foi Cristiano Araujo. Porém, a velha e estúpida indústria do entretenimento decidiu explorar ao máximo a polêmica mais fraca, mas a mais chamativa. E assim continuamos alienados.


03 março 2015

Novela e crianças.


Esse texto surgiu à partir de um exercício de teatro que consistia em apresentar argumentos sobre temas variados de maneira compatível. Explico: diante de uma pergunta, o ator ou a atriz deveria responder de maneira tal que conseguisse manter a atenção de uma turma inteira, expor sua opinião rapidamente, de maneira objetiva e com bom desenvolvimento dos argumentos. Dentre várias perguntas, a que provocava uma reflexão envolvendo novela e criança foi a que mais rendeu polêmica. A pergunta: "você acha que a novela pode prejudicar a formação de uma criança?"

Em respeito às minhas e aos meus colegas, não apresentarei aqui no meu texto quais foram as opiniões contrárias às minhas. Tampouco minha avaliação quanto aos argumentos dados. Apenas apresentarei minha opinião com mais tempo e um pouquinho mais de referências e fontes. 

Que a televisão é capaz de influenciar uma criança é fato tamanho que simplesmente não encontrei nenhuma pesquisa que sequer mencione a possibilidade do contrário. Diante da constatação de que a televisão é capaz de influenciar muito uma criança, destaca-se o riquíssimo debate que há sobre a consideração de que toda propaganda para criança deve ser considerada abusiva. Aliás, já reparou que o intermediário responsável deixou de existir nas propagandas de produtos infantis? Antigamente, dizia-se "papai, mamãe, não se esqueça da minha Caloi" ou "peça para o papai e para a mamãe as bonecas da Estrela". Hoje, a própria criança é tratada como consumidor final. Nenhuma empresa investiria milhões de reais em propaganda na televisão se não influenciasse todo um público. 

Se as novelas são tão influentes, bem como os esportes, os programas de auditório, e os programas de humor, podem elas influenciar na formação psicológica e no desenvolvimento psicossocial da criança. No caso das novelas, destacam-se mais aquelas que atingem grande impacto na sociedade seja por sua trama ou seja por uma determinada atitude polêmica explorada pelo argumento da novela. Uma trama que conquista todo um país, repercutindo por vezes internacionalmente, ainda que visivelmente voltado para um público adulto, estimula inúmeros comportamentos que acabam sendo reproduzidos pelos mais jovens - especialmente aqueles que não possuem capacidade de filtrar ou criticar os conteúdos do que assistem. E o que falar das chamadas novelas infanto-juvenis como "Carrossel", "Chiquititas", e "Malhação"? Ainda que suavizem ou mesmo não abordem conteúdos de cunho mais adulto, acabam inevitavelmente influenciando comportamentos que são incompatíveis com um desenvolvimento normal de uma criança em ambientes como a escola, o clube ou o parquinho. 

Sim, as novelas podem ser prejudiciais na formação de uma criança. Elas tem por hábito repetir comportamento e situações, principalmente aquelas em que há consentimento ou que receba boa atenção de seus pais. E como a própria televisão não fornece contrapontos para afirmar que determinadas atitudes são inadequadas - até porque não é papel da TV - a reprodução de comportamentos inadequados com a etapa de desenvolvimento da criança certamente prejudicará a formação da criança. 

É claro que uma criança que só assiste a programas educativos terá sérios problemas de socialização com outras crianças. Se adulto (como eu) que não assiste novela já possui dificuldades em socialização com outras pessoas, imagine uma criança que não possui assimiladas outras fontes que sejam capazes de estimular uma conversa ou mesmo proporcionar inclusão a um grupo social. A saída é uma formação que estimule a crítica, ou seja, que valorize na criança sua capacidade de discernir o certo do errado, o que ela deve considerar bom ou ruim para ela. Mas isso é assunto para outra postagem. Para essa, fica somente o argumento de que sim, as novelas podem prejudicar uma criança. 

Ósculos e amplexos!

23 fevereiro 2015

O que mais querem que o ator faça? Oscar 2015.


No mundo do futebol, na década de 1990, havia uma imensa crise de público em praticamente todo o Brasil. Coincidentemente, explodiam índices e mais índices de audiência para os jogos da liga americana de basquete, NBA. Era época do fenomenal Chicago Bulls de Jordan, Pippen, Grant, Armstrong, e outras feras do búfalo da cidade dos ventos. No vôlei, outro fenômeno: mudanças significativas nas regras transformaram o jogo para uma velocidade de videoclipe. Fim da necessidade da bola estar em "vantagem" para se confirmar um ponto, fim da zona restrita de saque, foram mudanças consideradas drásticas e que fizeram com que o público voltasse para as quadras. Logo, os intelectuais da bola chegaram em uma conclusão: o futebol tem crise de público porque são poucos os gols. A violência e a precaridade dos estádios nem sequer foi cogitada nessa época. Somente uma década depois que veio a surgir o Estatuto do Torcedor e as alvissareiras transformações dos estádios. 

O que se viu depois foi um festival de horrores no futebol: a bola se tornou mais rápida, goleiro não podia pegar com as mãos a bola mais do que uma vez (que ainda bem foi abolida essa regra ridícula e substituída por outra um pouco menos ilógica que proíbe o goleiro de pegar com as mãos as bolas recuadas por jogador do próprio time), aumento da distância entre as traves, e outras ideias tenebrosas. Institucionalizou-se, até, o erro do árbitro como parte do jogo. Pois, somente na Copa do Mundo do Brasil, 2014, é que medidas tecnológicas para diminuir o erro humano na decisão do árbitro foi introduzido no futebol, sendo que, por exemplo, no futebol americano já são introduzidas tais medidas desde a década de 1980. Zetti, goleiro ídolo do São Paulo na época brincou sério em uma entrevista para a Rede Globo dizendo: - "o quê mais querem que o goleiro faça?  Daqui a pouco vão tirar o goleiro do futebol". 

Enfim, esse festival de horrores que foi fruto da genialidade toda dos intelectuais da bola de que o problema era a escassez de gol foi a primeira coisa que me veio à lembrança quando vi pela segunda vez, dois anos consecutivos, na premiação do Oscar o prêmio de melhor ator ir para aquele que mais transformou o seu próprio corpo. Em 2014, ficou nítido que o critério que a Academia de Hollywood adotou para sua escolha para o prêmio de Melhor Ator foi quem mais maltratou o próprio corpo em busca da verdade cênica. Matthew McConaughey (Clube de Compras Dallas, 2014) concorreu com Christian Bale (Trapaça, 2014), ambos com transformações físicas extremas. Venceu McConaughey, que foi o que emagreceu assustadoramente para fazer seu personagem em fim de sua vida por causa da AIDS. 2015, o critério se repetiu e o prêmio foi para Eddie Redmayne (A Teoria de Tudo, 2015), interpretando o físico Stephen Hawking.

É claro que McConaughey teve um trabalho fenomenal em 2014. Tudo que ele fez foi muito bom. Veja a participação dele no filme "O Lobo de Wallstreet" e logo se vê que mereceu todas as premiações que teve. O problema não está no ator, mas na academia que valoriza o pior aspecto dessa forma de construção do personagem. Este ano, as interpretações estavam mais equilibradas. Michael Keaton (Birdman, 2015), Benedict Cumberbath (Jogo da Imitação, 2015), Steve Carrell (Foxcatcher, 2015) tiveram atuações formidáveis do começo ao fim de seus filmes. Correndo atrás, mas com não tão boa desenvoltura, foi a boa atuação de Bradley Cooper (Sniper Americano, 2015). Redmayne, porém, não tem uma atuação tão destacada até que seu personagem atinge a total deformação de seu corpo por causa de sua doença motora degenerativa. Somente quando há tamanha deformação é que Redmayne brilha e comove o espectador. Aliás, o filme é muito mais um romance água com açúcar que enrola até que seu ápice seja justamente a total degeneração muscular de Hawkings. As ideias que Hawkings teve que o fizeram mundialmente reconhecido são muito superficialmente pinceladas e um enfoque sobre o ateísmo do físico foi abordado de maneira bastante boba. O diferencial, portanto, para a Academia foi a transformação do próprio corpo do ator. 

Em Birdman, Iñarritu brinca e provoca essa busca insana por uma verdade que vá além da verdade cênica. (ATENÇÃO: SPOILER) Tanto que transforma o ato do ator que atira de verdade em seu próprio nariz em um sequência de cenas patéticas logo na sequência do gesto imbecil. Aliás, todas as tentativas de ir além da verdade cênica é tratada como patetice, por exemplo, em todos os momentos da atuação do personagem de Edward Northon (FIM DO SPOILER). Concordo com Iñarritu. O que mais querem que o ator faça? Se mate de verdade para construir um personagem que morre em cena? 

A crítica deve valorizar o processo criativo do ator em sua construção do personagem. Nada de valorizar esquisitices como a do ator que não sai de seu personagem até que seu trabalho termine. Aliás, que desagradável que é a pessoa que não deixa seu personagem no palco ou no set de gravação. O ator sofre e muito quando tem que mudar seu corpo para dar mais verdade ao seu personagem. Mas tudo tem técnica e tecnologia para poupar o ator de situações que são análogas à auto-mutilação.

Valorizo muito mais o ator gordo que consegue se expressar e interpretar um magro com tamanha verdade que o público sequer nota que se trata de uma pessoa obesa. Um dos maiores desafios do teatro brasileiro, apenas para exemplificar, justamente se encontra em dar verdade para Sônia em "Valsa n. 6" de Nelson Rodrigues. Afinal, uma garota de 15 anos não tem o peso da experiência para ser capaz de boa interpretação de uma alma aflita e uma mulher de 30 anos ou mais dificilmente consegue convencer que tem apenas 15 anos de idade e que é Sônia nos palcos. Quase todos os diretores falham miseravelmente. Mas quando uma atriz consegue atingir a verdade cênica, torna-se um monólogo dos mais brilhantes que o público já tenha assistido. Creio que o cinema tem muito mais condições de atingir esse resultado que o teatro. Portanto, preocupa-me esse gosto da academia de valorizar a mutilação do ator em busca de sua verdade cênica.