24 janeiro 2007

A morte do dente opressor


Era apenas um dente. Um simples e qualquer dente. Irmão de tantos outros mais velhos ou mais novos. Com o tempo, este dente foi adoecendo. Já não mais cumpria bem a sua função. E, quando tinha que cumprir suas obrigações de dente, forçava os demais a produzirem muito mais para compensar a falta de produtividade do irmão dente doente.
O tempo foi passando e o dente doente foi piorando. Nem sequer produzir ele não conseguia
mais. Passou então a escravizar a sociedade dentária inteira. Tudo parecia gerar para tão somente ele. O canino picotava a carne mais vezes para ele. O molar amolara os alimentos em ritmo alucinante também para ele. E quando os dentes ameaçavam de greve, o dente doente aplicava imediata repressão. E como era longa e dolorosa a repressão do dente opressor!
E a opressão se acentuava. Era tão absoluta, que a sociedade dentária parecia ter se acostumado com as algemas de sangue e dor. Aos poucos, os demais dentes foram assumindo novos formatos, desgastes e mais desgaste um sobre os outros. Haviam aqueles que, oportunisticamente, selecionavam o seu trabalho em nome daquele dente tirano e doente. Eram os dentes mais próximos a ele. Mas, em geral, todos trabalhavam para o dente opressor. A própria alimentação passou a se moldar segundo o gosto do dente tirano. Se algo não o agradasse, era imediatamente reprimido ou simplesmente expulso da boca, a cidade dentária. E, com o passar do tempo, vários e vários alimentos simplesmente pararam de entrar na cidade. Nem mais se perguntava se era ou não do gosto do tirano dente, simplesmente associavam alimentos semelhantes e barravam na idéia, antes mesmo da entrada na cidade.
Semanas, meses, anos se prolongaram. Tudo parecia em paz. Todos trabalhavam dobrado, quadruplicado em prol daquilo que ninguém mais sabia o motivo. Esqueceram que era para o dente opressor, ou simplesmente incorporam para si que a vida é assim mesmo. Que a dor que de vez em quando passavam era um mal necessário para a manutenção da paz.
Sem pressa, o tempo foi passando. Uma revolta pairou sobre as mentes. Poucos sabiam ou entendiam a necessidade de mudança. Idéias eram reprimidas em nome de um dogma criado pelo dente opressor.
Foi numa manhã de quarta-feira, o dente opressor foi arrancado. Sem aviso prévio, sem comemorações. A tristeza abateu sobre os demais dentes, afinal, eram todos irmãos. A boca inteira ficou dormente, sem entender o que aconteceu. Mas, lá no fundo, os cisos comemoravam. Sabiam que seu tempo de exército de reserva acabara. O opressor foi condenado ao boticão, e cumpriu-se a sentença. E foi logo na manhã da sexta-feira seguinte que, singelamente, a boca voltou a sorrir. Serão mais anos de trabalho para recuperar a beleza da cidade. Mas, não haverão mais dores, não haverá mais sofrimento. Cada qual trabalhará mais e mais, mas para o bem comum. E, no lugar do dente opressor, apenas um símbolo, porém agora produtivo, de que é necessário se livrar do opressor para que toda a sociedade possa respirar o verdadeiro e inebriante ar da paz e igualdade.
(Hoje sem ósculos, só amplexos, pois a boca ainda está dormente da revolução e execução do dente opressor.)