29 junho 2015

Zeca Camargo não atacou ou sequer desrespeitou Cristiano Araújo. Pior, desrespeitou a todos!




Como é difícil escrever sobre a crônica de Zeca Camargo! Ao mesmo tempo em que não vi desrespeito com o falecido Cristiano Araujo e nem com os fãs desse cantor, vi um baita desrespeito com o povo brasileiro. Mas, para isso, preciso desconstruir o desrespeito que eu não vi para demonstrar o desrespeito que vi.

Lutamos tanto por uma televisão mais crítica, com conteúdos mais edificantes. E quando surge uma crítica, que bem ou mal elaborada sempre é um convite à reflexão, logo ela é absurdamente atacada e mal interpretada. Ainda que Zeca tenha pesado a mão, sobretudo quando compara os livros de colorir enquanto reflexo de ausência de cultura, a crítica nos convida a refletir o próprio fenômeno da indústria de entretenimento. Trocando em miúdos: de tantas coisas que podemos debater sobre essa crônica, definitivamente não é sobre Cristiano Araujo que ele estava falando. Cristiano Araujo serve de ilustração para a reflexão que Zeca propôs. Houve escolhas muito mais desrespeitosas e infelizes do que se utilizar de um recém-falecido para se dizer o que pensa.

O primeiro vídeo que encontrei no Youtube com a crônica em sua íntegra já decreta: "Zeca Camargo fala mal de Cristiano Araujo - Falta com respeito aos familiares e fãs" (sic). Mas não foi o que eu vi. Pelo contrário, logo no começo do vídeo/crônica, Zeca Camargo reconhece a importância de Cristiano Araujo e que o fato dele não ser, ao mesmo tempo, capaz de comover multidões ainda que desconhecido pelos grandes centros é um fenômeno de um país repleto de cantores talentosos e com dimensões continentais. Ou seja, ele trata com respeito Cristiano Araujo, reconhece seu talento, lamenta a tragédia, mas se impressiona com a comoção nacional. O que impressionou Zeca Camargo é a necessidade das massas pela busca de sua catarse - definida aqui por Zeca Camargo como algo que une um povo pela emoção.

Aristóteles, em sua Poética, defende a catarse, definindo-a enquanto uma ocasião em que os sentimentos de um conjunto de pessoas são liberados, dizendo que tais ocasiões são fundamentais para que os sentimentos reprimidos não se tornem perniciosos. Como exemplo de ocasião de liberação de sentimentos, temos os momentos emocionantes do teatro ou do cinema, bem como temos os funerais. Zeca Camargo escolheu o que ele chamou de grandes funerais como um momento necessário de catarse - enquanto uma "forma de purificação" (sic). Nesse momento, cita ele que cada geração teve sua catarse com funerais como o de Kurt Cobain, Cazuza, princesa Diana, e Michael Jackson. Mas, Cristiano Araujo, relativamente desconhecido arrastar uma multidão em seu funeral de igual maneira que um grande conhecido como Airton Senna ou Eduardo Campos? - é com essa interrogação que a crítica começa a desandar.

A coisa geralmente desanda quando a crítica opta por uma escolha infeliz. No caso, escolher para ilustrar sua crônica os livros de colorir. A coqueluche que está sendo tais livros em todo o mundo e igualmente no Brasil é constatada com estranheza na crítica de Zeca. Segundo ele, dentre uma série de problemas, tais livros "destacam a pobreza da alma cultural brasileira". E que, duvidando que tenha algo de valor cultural em tais livros, a coqueluche desses livros revelam a ausência de referências culturais para o povo brasileiro.

É equivocado dizer que não temos referências culturais em tempos atuais. Aliás, sendo Zeca Camargo alguém que está fazendo uma crônica crítica em uma televisão, quando faz essa afirmação acaba por desconsiderar inclusive a si próprio. Não há um brasileiro sequer que não tenha uma opinião formada de que temos como grandes ícones culturais e vivos como Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Caetano, Gil, e tantos outros. Então, temos referências culturais e de sobra reconhecidas e consagradas pelas massas. E olha que estou falando por enquanto somente da limitada cultura elitizada. A cultura de massas e a cultura popular é imensa e bastante referenciada pelo povo brasileiro. Colocar tudo isso em um pacote e comparar enquanto pobreza cultural por se tornar um fenômeno livros de colorir - e que não é exclusividade brasileira, trata-se de um fenômeno mundial - é um grande exagero e soa como desrespeito.

Por fim, Zeca elabora uma provocação interessante, porém recorrente: os ídolos de um produto só. Por mais que se possa concordar com seu posicionamento - ou discordar, o que daria um outro post imenso como esse - a questão é que não se trata de uma escolha adorarmos falsos herois. Dizer que precisamos sim de herois de verdade é clamar para a indústria de entretenimento justamente que fabrique mais e mais pobreza cultural. Não ataca o maior inimigo da verdadeira cultura que é justamente a indústria do entretenimento. Quando faz uma imensa crônica como essa e não se posiciona contra quem elabora o conteúdo alienante e joga para a geral a responsabilidade de estar alienado, desrespeita quem é vítima e não quem é o autor do crime.

Portanto, há uma série de desrespeitos na crônica de Zeca Camargo. Mas acredito que nenhum especificamente pelo o que ele está sendo acusado, ou seja, o único que não foi desrespeitado foi Cristiano Araujo. Porém, a velha e estúpida indústria do entretenimento decidiu explorar ao máximo a polêmica mais fraca, mas a mais chamativa. E assim continuamos alienados.


03 março 2015

Novela e crianças.


Esse texto surgiu à partir de um exercício de teatro que consistia em apresentar argumentos sobre temas variados de maneira compatível. Explico: diante de uma pergunta, o ator ou a atriz deveria responder de maneira tal que conseguisse manter a atenção de uma turma inteira, expor sua opinião rapidamente, de maneira objetiva e com bom desenvolvimento dos argumentos. Dentre várias perguntas, a que provocava uma reflexão envolvendo novela e criança foi a que mais rendeu polêmica. A pergunta: "você acha que a novela pode prejudicar a formação de uma criança?"

Em respeito às minhas e aos meus colegas, não apresentarei aqui no meu texto quais foram as opiniões contrárias às minhas. Tampouco minha avaliação quanto aos argumentos dados. Apenas apresentarei minha opinião com mais tempo e um pouquinho mais de referências e fontes. 

Que a televisão é capaz de influenciar uma criança é fato tamanho que simplesmente não encontrei nenhuma pesquisa que sequer mencione a possibilidade do contrário. Diante da constatação de que a televisão é capaz de influenciar muito uma criança, destaca-se o riquíssimo debate que há sobre a consideração de que toda propaganda para criança deve ser considerada abusiva. Aliás, já reparou que o intermediário responsável deixou de existir nas propagandas de produtos infantis? Antigamente, dizia-se "papai, mamãe, não se esqueça da minha Caloi" ou "peça para o papai e para a mamãe as bonecas da Estrela". Hoje, a própria criança é tratada como consumidor final. Nenhuma empresa investiria milhões de reais em propaganda na televisão se não influenciasse todo um público. 

Se as novelas são tão influentes, bem como os esportes, os programas de auditório, e os programas de humor, podem elas influenciar na formação psicológica e no desenvolvimento psicossocial da criança. No caso das novelas, destacam-se mais aquelas que atingem grande impacto na sociedade seja por sua trama ou seja por uma determinada atitude polêmica explorada pelo argumento da novela. Uma trama que conquista todo um país, repercutindo por vezes internacionalmente, ainda que visivelmente voltado para um público adulto, estimula inúmeros comportamentos que acabam sendo reproduzidos pelos mais jovens - especialmente aqueles que não possuem capacidade de filtrar ou criticar os conteúdos do que assistem. E o que falar das chamadas novelas infanto-juvenis como "Carrossel", "Chiquititas", e "Malhação"? Ainda que suavizem ou mesmo não abordem conteúdos de cunho mais adulto, acabam inevitavelmente influenciando comportamentos que são incompatíveis com um desenvolvimento normal de uma criança em ambientes como a escola, o clube ou o parquinho. 

Sim, as novelas podem ser prejudiciais na formação de uma criança. Elas tem por hábito repetir comportamento e situações, principalmente aquelas em que há consentimento ou que receba boa atenção de seus pais. E como a própria televisão não fornece contrapontos para afirmar que determinadas atitudes são inadequadas - até porque não é papel da TV - a reprodução de comportamentos inadequados com a etapa de desenvolvimento da criança certamente prejudicará a formação da criança. 

É claro que uma criança que só assiste a programas educativos terá sérios problemas de socialização com outras crianças. Se adulto (como eu) que não assiste novela já possui dificuldades em socialização com outras pessoas, imagine uma criança que não possui assimiladas outras fontes que sejam capazes de estimular uma conversa ou mesmo proporcionar inclusão a um grupo social. A saída é uma formação que estimule a crítica, ou seja, que valorize na criança sua capacidade de discernir o certo do errado, o que ela deve considerar bom ou ruim para ela. Mas isso é assunto para outra postagem. Para essa, fica somente o argumento de que sim, as novelas podem prejudicar uma criança. 

Ósculos e amplexos!

23 fevereiro 2015

O que mais querem que o ator faça? Oscar 2015.


No mundo do futebol, na década de 1990, havia uma imensa crise de público em praticamente todo o Brasil. Coincidentemente, explodiam índices e mais índices de audiência para os jogos da liga americana de basquete, NBA. Era época do fenomenal Chicago Bulls de Jordan, Pippen, Grant, Armstrong, e outras feras do búfalo da cidade dos ventos. No vôlei, outro fenômeno: mudanças significativas nas regras transformaram o jogo para uma velocidade de videoclipe. Fim da necessidade da bola estar em "vantagem" para se confirmar um ponto, fim da zona restrita de saque, foram mudanças consideradas drásticas e que fizeram com que o público voltasse para as quadras. Logo, os intelectuais da bola chegaram em uma conclusão: o futebol tem crise de público porque são poucos os gols. A violência e a precaridade dos estádios nem sequer foi cogitada nessa época. Somente uma década depois que veio a surgir o Estatuto do Torcedor e as alvissareiras transformações dos estádios. 

O que se viu depois foi um festival de horrores no futebol: a bola se tornou mais rápida, goleiro não podia pegar com as mãos a bola mais do que uma vez (que ainda bem foi abolida essa regra ridícula e substituída por outra um pouco menos ilógica que proíbe o goleiro de pegar com as mãos as bolas recuadas por jogador do próprio time), aumento da distância entre as traves, e outras ideias tenebrosas. Institucionalizou-se, até, o erro do árbitro como parte do jogo. Pois, somente na Copa do Mundo do Brasil, 2014, é que medidas tecnológicas para diminuir o erro humano na decisão do árbitro foi introduzido no futebol, sendo que, por exemplo, no futebol americano já são introduzidas tais medidas desde a década de 1980. Zetti, goleiro ídolo do São Paulo na época brincou sério em uma entrevista para a Rede Globo dizendo: - "o quê mais querem que o goleiro faça?  Daqui a pouco vão tirar o goleiro do futebol". 

Enfim, esse festival de horrores que foi fruto da genialidade toda dos intelectuais da bola de que o problema era a escassez de gol foi a primeira coisa que me veio à lembrança quando vi pela segunda vez, dois anos consecutivos, na premiação do Oscar o prêmio de melhor ator ir para aquele que mais transformou o seu próprio corpo. Em 2014, ficou nítido que o critério que a Academia de Hollywood adotou para sua escolha para o prêmio de Melhor Ator foi quem mais maltratou o próprio corpo em busca da verdade cênica. Matthew McConaughey (Clube de Compras Dallas, 2014) concorreu com Christian Bale (Trapaça, 2014), ambos com transformações físicas extremas. Venceu McConaughey, que foi o que emagreceu assustadoramente para fazer seu personagem em fim de sua vida por causa da AIDS. 2015, o critério se repetiu e o prêmio foi para Eddie Redmayne (A Teoria de Tudo, 2015), interpretando o físico Stephen Hawking.

É claro que McConaughey teve um trabalho fenomenal em 2014. Tudo que ele fez foi muito bom. Veja a participação dele no filme "O Lobo de Wallstreet" e logo se vê que mereceu todas as premiações que teve. O problema não está no ator, mas na academia que valoriza o pior aspecto dessa forma de construção do personagem. Este ano, as interpretações estavam mais equilibradas. Michael Keaton (Birdman, 2015), Benedict Cumberbath (Jogo da Imitação, 2015), Steve Carrell (Foxcatcher, 2015) tiveram atuações formidáveis do começo ao fim de seus filmes. Correndo atrás, mas com não tão boa desenvoltura, foi a boa atuação de Bradley Cooper (Sniper Americano, 2015). Redmayne, porém, não tem uma atuação tão destacada até que seu personagem atinge a total deformação de seu corpo por causa de sua doença motora degenerativa. Somente quando há tamanha deformação é que Redmayne brilha e comove o espectador. Aliás, o filme é muito mais um romance água com açúcar que enrola até que seu ápice seja justamente a total degeneração muscular de Hawkings. As ideias que Hawkings teve que o fizeram mundialmente reconhecido são muito superficialmente pinceladas e um enfoque sobre o ateísmo do físico foi abordado de maneira bastante boba. O diferencial, portanto, para a Academia foi a transformação do próprio corpo do ator. 

Em Birdman, Iñarritu brinca e provoca essa busca insana por uma verdade que vá além da verdade cênica. (ATENÇÃO: SPOILER) Tanto que transforma o ato do ator que atira de verdade em seu próprio nariz em um sequência de cenas patéticas logo na sequência do gesto imbecil. Aliás, todas as tentativas de ir além da verdade cênica é tratada como patetice, por exemplo, em todos os momentos da atuação do personagem de Edward Northon (FIM DO SPOILER). Concordo com Iñarritu. O que mais querem que o ator faça? Se mate de verdade para construir um personagem que morre em cena? 

A crítica deve valorizar o processo criativo do ator em sua construção do personagem. Nada de valorizar esquisitices como a do ator que não sai de seu personagem até que seu trabalho termine. Aliás, que desagradável que é a pessoa que não deixa seu personagem no palco ou no set de gravação. O ator sofre e muito quando tem que mudar seu corpo para dar mais verdade ao seu personagem. Mas tudo tem técnica e tecnologia para poupar o ator de situações que são análogas à auto-mutilação.

Valorizo muito mais o ator gordo que consegue se expressar e interpretar um magro com tamanha verdade que o público sequer nota que se trata de uma pessoa obesa. Um dos maiores desafios do teatro brasileiro, apenas para exemplificar, justamente se encontra em dar verdade para Sônia em "Valsa n. 6" de Nelson Rodrigues. Afinal, uma garota de 15 anos não tem o peso da experiência para ser capaz de boa interpretação de uma alma aflita e uma mulher de 30 anos ou mais dificilmente consegue convencer que tem apenas 15 anos de idade e que é Sônia nos palcos. Quase todos os diretores falham miseravelmente. Mas quando uma atriz consegue atingir a verdade cênica, torna-se um monólogo dos mais brilhantes que o público já tenha assistido. Creio que o cinema tem muito mais condições de atingir esse resultado que o teatro. Portanto, preocupa-me esse gosto da academia de valorizar a mutilação do ator em busca de sua verdade cênica.

22 abril 2014

Pobre Inglês da Canção da Chuva.

"É a primavera do meu amor"... "a segunda estação que estou conhecendo", Diz a canção do Led Zeppelin.


 Fico cá refletindo, em primor português:
 Mesmo no hemisfério de lá, primavera vem depois do inverno.
 Que inferno, deletério, deve ter sido o amor desse inglês.
 Exceto se de cá saiu um dia antes do verão acabar
 E por lá chegando imediatamente após a primavera começar.

 Ainda assim, que melancólico esse olhar!
 Como se encaixa as águas desse março nessa pintura?
 As cinzas de uma quarta sem ternura?
 O adeus do sobe-morro de um amor que sobrevive só à beira-mar?
 No prazer de se perder no corpo de quem só quer te achar?

 Pior ainda é por lá chegar,
 Sem ela, ainda vendo o branco da neve.
 Com um sol que aparece, mas teima em esquentar.
 Com aquele vento cortante, à orelha lembrar,
 Que um dia foi feliz, mas só voltará a sê-lo se cá voltar. 

27 novembro 2013

Um Bilac curitibano... (sobre a demolição das vias na zona portuária do Rio)

O jornal da manhã dava imagens em todas as velocidades, principalmente em lentíssimas. Em questão de segundos as vias da zona portuária do Rio de Janeiro tornavam-se escombros. Enquanto eu vagava por memórias de um certo tempo em que eu percorria tal trecho que não existe agora, ao meu lado, um sujeito comendo uma coxinha dava gritos de felicidade.

Alvíssaras emanadas de um novo Bilac, porém assistindo cá em terras curitibanas. “Vibrai, feri, exterminai, demoli, trabalhai e cantai sem descanso, (dinamites) sagradas! cada golpe dos vossos é uma benção e uma redenção"... teria certamente exclamado o entusiasmado parnasso!

04 maio 2013

O contraponto de uma tendência: comunistas e religiosos.



Para os comunistas, o que deve preceder quando o assunto é religião é a análise da questão pela lógica da luta de classes. Fugir do modelo anticlerical da Ilustração é o primeiro passo para uma construção qualificada da ação dos comunistas entre o povo religioso.


Estamos em tempos de grande visibilidade religiosa na política do Brasil graças à presença de um fundamentalista religioso à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Em questão de dias, o velho tema sobre a relação entre religião e Estado se renova e uma enxurrada de discursos são utilizados em massa principalmente pelas redes sociais. E, por mais que seja centenário tal debate, impressiono-me com o imenso mau-trato dado ao tema principalmente por boa parte dos mais esclarecidos e honestos progressistas do país. A visão de muitos marxistas sobre a posição de Marx acerca da religião é extremamente simplificada e identificada tipicamente com o bordão já desgastado de que ela é simplesmente “o ópio do povo” e fim de papo.

A trincheira reacionária e conservadora cavada no seio das massas revolucionárias pelas religiões ao longo da, denominada por Hobsbawn, “Era das Revoluções” ao longo do século XIX é uma verdade ainda em tempos atuais. Em larga medida, quando não vemos inúmeras instituições religiosas cumprindo esse papel, vemos tantas outras envolvidas em imensas engenharias sociais, financeiras, e anti-comunistas. Todavia, vira-e-mexe surgem movimentos ou expressões revolucionárias em meio justamente às religiões. A história de independência da América do Norte e da América Latina é composta de inúmeros revolucionários sacerdotes e a questão religiosa foi por vezes a voz libertária desses povos. A existência de organizações como a Juventude Universitária Católica, a Ação Popular, e a Teologia da Libertação – bem como a inserção relevante de clérigos católicos na luta operária como o caso do paraguaio Fernando Lugo e dos padres envolvidos com a revolução sandinista e com as Farc-EP, por exemplo, provoca-nos a necessidade de uma releitura tanto da análise marxista da religião quanto da tática revolucionária acerca do trato ao tema. A “quintessência”, portanto, da concepção de “religião é o ópio do povo” é simplificadora por demais e mais atrapalha do que ajuda na hora de se estabelecer as bases do argumento sobre o fenômeno religioso na política e na luta de classes.

Para não incorrer na “heresia” de se desconsiderar os textos clássicos do marxismo, primeiramente é importante explorarmos melhor esse papel narcótico apontado no célebre “a religião é o ópio do povo”. É do espírito da época, em seu sentido romântico alemão, com inúmeras tonalidades distintas, a identificação do papel da religião na sociedade pelo seu efeito narcótico. Kant, Feuerbach, e Hegel, muito antes de Marx, todos identificavam tal efeito e de maneira positiva. De uma forma ou outra, notavam que, em meio à amargura de uma vida em meio a um mundo insensível, a religião promove, por meio da espiritualidade, certos alívios como amor, fé e esperança. Mesmo os mais críticos, e por vezes os mais irônicos, como Feuerbach e Hess, identificavam que a droga religiosa era necessária, ainda que tenha por efeito colateral o vício da servidão social.

Marx, em seu texto “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel” (1844) concorda com a ambivalência do fenômeno religioso. Entretanto, ao darmos melhor atenção ao parágrafo onde se encontra a máxima de que a religião “é o ópio do povo”, de imediato nota-se que se trata de um pensamento muito mais complexo do que as pessoas costumam utilizar ao desenvolver suas críticas. Ainda que nesse texto Marx rejeita totalmente a religião, não descarta, porém, o caráter dialético que ela possui: “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo” (MARX, 1843-4, p. 1).

Se levarmos em consideração o conjunto da obra de 1844, Marx está muito mais próximo ao movimento hegeliano de esquerda, que denunciava a alienação provocada pela religião e a busca em considerá-la um fenômeno humano, que ao entendimento da Ilustração, que denunciava a conspiração clerical – e como tem, em dias atuais, aqueles que confudem e misturam essas duas formas em seus argumentos quando o assunto é religião! – Porém, ainda que, sem dúvida, dialética, não se tratava de uma análise classista e nem tampouco histórica. Tal análise começa a ocorrer na literatura marxista, de fato, na “Ideologia Alemã”, de 1846. Eis que nessa obra é que a observação da religião enquanto coisa social e histórica se inicia de fato. E o que mais chama a atenção: Marx, como método, coloca a religião como uma das inúmeras formas da ideologia de um povo e necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais. Aponta, portanto, o caminho da análise: o que é a religião, ou no que ela acredita ou se é verdade o que ela promete pouco importa à luz das relações sociais. Mas, por ser coisa social, o que importa é compreender que qualquer perturbação histórica das condições sociais provoca, ao mesmo tempo, a perturbação das concepções e das representações dos homens e, como corolário, também das representações religiosas. Isso explica, por exemplo, porque os sacerdotes tiveram papéis tão distintos no século XIX na Europa e nas Américas - o papel obscurantista e reacionário ao longo da Primavera dos Povos e o papel libertador e revolucionário nas lutas por Independência na América Latina.

Tudo leva a crer que Marx dá o assunto por encerrado em “Ideologia Alemã”, já que depois não apresenta nenhum outro estudo mais desenvolvido sobre a religião – apenas algumas ideias sem maior cuidado n'O Capital e nos Grundrisse. Pelos textos de Karl Marx, unicamente, notamos que a conclusão acerca das religiões vai muito mais além do que a identificação de seu papel narcótico. Em outras palavras, Marx se preocupou mais com o “vale de lágrimas” que com os “consoladores”. E, no tocante à teologia, ela deve ser observada quanto ao seu uso político, possível criador tanto de “ murmuro e ranger de dentes” quanto de saciar os “sedentos e famintos por justiça”.

Tendo esclarecido esse ponto, devemos somar nossas observações com a contribuição ímpar de Engels para se abordar a religião de maneira materialista-histórica-dialética: a visão da luta de classes. Diferentemente de seus contemporâneos – e de muitos outros que vieram depois até os dias atuais – Engels não olha para a religião enquanto quintessência a-histórica, mas como uma forma cultural e de massas. Observa que a religião não se trata necessariamente de um representante conservador no duelo iluminista entre revolução e reação, como foi o caso dos protestantes que usaram de sua religião para combater de maneira revolucionária os materialistas que estava com os Stuarts na Inglaterra no século XVII. E vai mais além, Engels longe de conceber a Igreja enquanto uma entidade homogênea, identifica sua característica de massas e sua divisão de acordo com seus componentes de classe. Demonstra Engels que, historicamente, a Reforma Protestante, por exemplo, foi fruto da luta de classes. Um alto clero reacionário em conflito com um baixo clero e um movimento campesino revolucionário, culminando em um rompimento. Aponta, inclusive, que as teses de Lutero tem mais importância econômica que teológica – uma vez que foram usadas para enfrentar os pesados impostos clericais da Igreja Católica sobre a população germânica essencialmente campesina.

Engels, ainda que ateu e anti-clerical ferrenho, também reconhecia positivamente o papel narcótico da religião. Porém, identificou que ao mesmo tempo em que a religião pode cumprir um papel de legitimação da ordem estabelecida, ela pode, em determinadas circunstâncias sociais, exercer um papel crítico, contestador e até mesmo revolucionário. Chegou, inclusive, a estabelecer um surpreendente paralelo – que, contemporaneamente, Hugo Chávez insistiu em resgatar – entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno. Segundo o alemão, os primeiros cristãos eram membros das mais baixas classes sociais na pirâmide social em suas sociedades: escravos, homens livres privados de direitos, camponeses endividados, e assim por diante. A diferença entre os cristãos primitivos e os socialistas modernos é o momentum da libertação: enquanto que para os primeiros seria para além dessa vida, para os segundos o momento é o agora.

Friedrisch Engels analisou o fenômeno religioso dando uma abordagem mais utilitarista na luta de classes, identificando o potencial de protesto da religião. Distinguiu-se em sua abordagem ao da Ilustração e ao da abordagem hegeliana – essa última adotada por Marx em quase toda sua literatura – apresentando a necessidade dos revolucionários sempre identificar o uso que as classes sociais fazem de suas religiões.

Karl Kautsky, antes de renegar o marxismo segundo Lênin, teceu inúmeros ensaios sobre o que considerava os precursores do socialismo moderno. Seriam esses precursores justamente algumas correntes religiosas que propunham uma sociedade distributiva – portanto, comunista, ainda que utópica e muito distinta do comunismo científico e operário moderno. Na visão kautskysta, os fundamentos religiosos são utilizados pelas classes sociais para justificar um posicionamento político e não necessariamente, portanto, tendo a ver com sentido teológico que a religião dá a eles. Por exemplo, a Santa Inquisição, baseada nos fundamentos apocalípticos, seriam na verdade expressões de desespero de uma classe dominante na manutenção de seu status quo diante de uma classe oprimida aspirando ideais comunistas que aprenderam com a própria vida religiosa. Em seu livro sobre Thomas More, ilustra a transformação que as próprias igrejas foram submetidas à medida que o mercantilismo ia ganhando força no mundo europeu. Segundo Kautsky, o autor de “Utopia” seria um legítimo e último representante de um catolicismo popular, velho e feudal – completamente diferente do mercantilista, elitista e novo catolicismo jesuítico moderno. More denunciava a brutal proletarização dos camponeses com a destruição da Igreja Católica Feudal, bem como denunciava a expropriação de terras comunitárias pela Reforma Protestante. Ao mesmo tempo, combatia as correntes autoritárias que haviam na Igreja propondo o fim do celibato clerical, a ordenação de mulheres, e um processo eleitoral onde as comunidades escolheriam seus padres.Kautsky, portanto, confirma a validade dos argumentos de Marx e Engels para o século XX afirmando que, além de ser fruto das relações sociais, a religião sofre transformações com a luta de classes identificando nessa contradição a necessidade de se evitar o ateísmo na elaboração do pensamento marxista contemporâneo.

Em “Socialismo e Religião”, de 1905, Lênin inicia seu texto com um duro discurso sobre o papel da religião na sociedade. Identifica e reforça todos os argumentos da Ilustração sobre a religião, acrescentando que há uma névoa obscura que faz com que a religião oprima também o espírito do trabalhador. Identifica o papel narcótico da religião, re-afirmando a velha máxima da religião enquanto ópio do povo, mas não a vê positivamente - a vê como uma cachaça ruim onde os escravos do capital afogam sua humanidade e suas reivindicações por uma vida minimamente digna. Seria então um dos papéis dos socialistas provocar o rompimento que o trabalhador tem com a névoa religiosa a fim de partir para a construção de um paraíso na terra, no agora. Entretanto, há uma forma para se fazer isso: jamais de "modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa 'a partir da razão', fora da luta de classes". Para Lênin, é um absurdo querer dissipar os preconceitos religiosos por meio unicamente de propaganda - uma estreiteza burguesa esquecer que o jugo religioso é fruto do jugo econômico. Como palavra de ordem, Lênin define que a posição dos comunistas em relação à religião é a defesa de que ela seja um assunto privado. Uma luta onde se defenda o direito de crença e de não-crença dos trabalhadores, porém rompendo qualquer relação entre a religião e o Estado (inclusive qualquer benefício econômico, fiscal, ou simbólico). E, para o partido comunista, onde esse assunto não pode ser privado, jamais se declarar um partido ateu - o que teria como consequência o impedimento de filiação de religiosos. Pelo contrário, permitir que a "incoerência cristã" e os "vestígios de velhos preconceitos" ingressem nas fileiras partidárias onde a questão religiosa não ocupa o primeiro lugar e há uma concepção científica na ordem da interpretação do mundo. E, por fim, alerta que sempre que a questão religiosa não é tratada pela lógica da luta de classes, a burguesia reacionária trata de atiçar a hostilidade religiosa. Em outras palavras, sempre que se perde o referencial classista, a burguesia manipula as massas de trabalhadores para defenderem suas posições em nome do combate à ameaça de destruição de suas crenças.

O antídoto seria justamente aproximar o fiel a unirem forças contra a escravidão proporcionada por um mundo onde ele mesmo identifica como iníquo, convidando a construir o paraíso que ele acredita hoje, aqui na terra. Identificar a luta de classes que há na própria religião e provocar a organização proletária. Evitar a "estreiteza burguesa" de considerar o jugo religioso como algo à parte do jugo econômico - coisa que acontece sempre que se combate a religião por meio unicamente da propaganda. Deve-se semear o combate ao fundamentalismo religioso dentro das próprias religiões, coisa que fará com que o próprio religioso entenda a opressão que esse fundamentalismo provoca e se manifeste no sentido de, reforçando suas crenças, derrube o opressor fundamentalista. Expropriar do burguês a sua capacidade de mobilizar as massas em nome da fé - conscientizando as massas que a melhor defesa de suas religiões se dá por meio de uma sociedade livre, de respeito à todas as crenças, e socialista. 




ENGELS, F. "Anti-Dühring". São Paulo:Paz e Terra, 1977.


ENGELS, F. "Contribution to the History of Primitive Christianity” In. K. Marx e F. Engels "On Religion" Londres: Lawrence&Wishart, 1960.
KAUTSKY, K. "Thomas More and His Utopia". Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/kautsky/1888/more/index.htm>, acessado em 18 de abril de 2013; Inglaterra, 1927; Alemanha, 1888.
LÊNIN, V. "Socialismo e Religião". Trad. FISHUK. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/12/03.htm>, acessado em 20 de abril de 2013; Rússia:1905
MARX, Karl "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel". Transc. Eduardo Velhinho. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000054.pdf>, acessado em 20 de abril de 2013; Alemanha: 1843-4
MARX, K., ENGELS, F. "A Ideologia Alemã: Crítica da Novíssima Filosofia Alemã na Pessoa dos seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do Socialismo Alemão na Pessoa dos seus Diversos Profetas". In. "Marx, Obras Escolhidas", Vol. I. Lisboa: Edições Avante, 1982.

03 abril 2013

Concurso: A melhor entidade estudantil do Paraná!

Ao ler a nota de repúdio lançada pelo movimento estudantil Kizomba (http://kizombapr.blogspot.com.br/2013/04/nota-de-repudio-direcao-da-upes.html), minha primeira reação foi a de desejar lançar um concurso. Sim, e esse concurso se chamaria: “a melhor entidade estudantil do Paraná”. Não seria um concurso nacional, pois ainda tenho um certo otimismo e acredito que essa realidade pode ser diferente em pelo menos uma entidade estudantil em todo o território nacional. As regras terão como critério: apurar qual é a entidade que promove lutas nacionais, estaduais e municipais dentro de suas instituições de ensino; que convoca os estudantes de sua instituição a se unir a outros estudantes nas lutas gerais dos estudantes; que cria mecanismos para a defesa dos estudantes que representa diretamente; e, por fim, que tenha excelência na aquisição, ampliação e administração de seu patrimônio.

Acompanho o movimento estudantil há uns vinte anos e desde sempre a situação já bradava contra a oposição – usando o neologismo usado na nota de repúdio – de “des-gestão”. Curiosamente também, a oposição bradava o mesmo para a situação. E juntos, situação e oposição, bradam a realidade de “des-gestão” do movimento estudantil como um todo para com os jovens e os estudantes.

Não são poucos os movimentos independentes das grandes forças políticas que surgem única e exclusivamente para apontar a má administração das entidades estudan
tis. Elas duram pouco, mas é impressionante seus resultados. Transformam qualquer sede de entidade estudantil, em poucos dias de gestão, no mínimo, num confortável centro de convivência para os estudantes. Ajeitam sua documentação e caixa da entidade com uma competência incrível. Promovem uma série de eventos que agradam a maioria dos estudantes – quem não gosta de uma boa festa? Entretanto, no primeiro sinal de necessidade política, como defender uma sala de aula inteira contra um abuso cometido por um professor despreparado, por exemplo, a entidade demonstra sua imensa fragilidade. E, em pouco tempo, os estudantes refletem que é melhor uma entidade estudantil capenga, mas que lute a uma entidade que brilha aos olhos, mas que se acovarda.

Então, as grandes forças políticas do movimento estudantil se instalam naquela entidade estudantil. Eles são ótimos em matéria de representação. Resolvem com diplomacia as querelas internas da instituição de ensino, mas não se acovardam quando uma luta de trincheira tem que ser promovida se necessária. Trazem para a instituição de ensino a consciência de que há uma luta muito maior sendo travada no mundo inteiro. Trazem ainda a noção de solidariedade, mostrando para os estudantes que o sofrimento que eles passam em sua instituição de ensino não é muito diferente daquele que o estudante de outra instituição sofre. Promovem imensos, importantes e divertidos congressos estudantis. Articulam-se com os grandes atores políticos e conquistam verdadeiras transformações sociais de vez em quando. Entretanto, a administração das entidades é horrorosa. Impera-se a desorganização. E a administração do patrimônio da entidade, em pouco tempo, começa a atrapalhar a condução das lutas estudantis. E logo os estudantes novamente começam a refletir se compensa uma entidade que lute, mas que não valoriza e não amplia o patrimônio que possui.

Eis a roda-viva que o movimento estudantil vive desde que venceu a ditadura militar e deixou de ser clandestino. Por isso a minha vontade de criar um prêmio para àquela entidade que consegue romper com esse ciclo vicioso.

Agora, soa como uma desonestidade ímpar uma força do movimento estudantil atacar a desorganização das entidades estudantis. Pior: atacar a carteirinha estudantil como o Kizomba atacou. Se meu prêmio fosse criado, tenho certeza: nenhuma, absolutamente nenhuma, força estudantil sequer pontuaria nos critérios de gestão do patrimônio das entidades que dirigem ou que exerçam influência majoritária. É um problema histórico, que independe da concepção ideológica ou política das forças estudantis. É também um problema econômico e sistêmico: os jovens são sistematicamente oprimidos e muito dificilmente atingem a multidisciplinaridade e a complexidade que uma gestão de entidade do terceiro setor necessita. Olhemos para todo o movimento social brasileiro e veremos que são exceções as organizações sem fins lucrativos que conseguem aliar com qualidade a luta com a administração. Por fim, não nos esqueçamos da luta de classes. A maioria esmagadora de estudantes que necessitam de uma representação política pertencem às classes sociais menos favorecidas da sociedade. Estudantes e mais estudantes que tomam para si a responsabilidade de dirigir o movimento estudantil, mas que desde as mais tenras idades são preparados pela sociedade a oferecerem única e exclusivamente sua força de trabalho. Não possuem educação administrativa e nem tampouco noção de acumulação de patrimônio.

Além de desonesto, é preocupante quando uma força política como o Kizomba ocupa-se deste tema unicamente para forçar um ataque contra as forças políticas a que se opõe. Quando age dessa forma, isenta-se de responsabilidade, atribuindo toda a culpa pelo ciclo vicioso à força política que deseja atacar. E o problema real não se discute. Não se apontam soluções. Nem sequer o vício é identificado para ser combatido. Ainda mais preocupante devido a força ser progressista e defender uma preocupação tipicamente opressora: a de que a luta se mede pela capacidade administrativa – quando sabem que são coisas distintas e que uma não se mede pela outra, ainda que ambas sejam importantes.

Ainda mais na contramão, essa força após fazer uma ode à burocracia, ainda ataca o principal elemento de autonomia política de uma entidade estudantil: a carteirinha. De uma só tacada, o movimento Kizomba se iguala a Paulo Renato, Veja, Folha de São Paulo e Fernando Henrique Cardoso no esforço em dissolver os mecanismos de luta das entidades estudantis. Identificam um ponto nevráugico da autonomia das entidades estudantis e a ataca com o argumento de que o movimento estudantil deve procurar outras formas de captar seus recursos. Essas mesmas forças já condenaram as parcerias com a iniciativa privada para se captar recursos para as entidades estudantis. Essas mesmas forças que condenam os convênios com o poder público. E o argumento não poderia ser ainda mais cretino: por ser um direito, o estudante não deve pagar nada.

O direito de ser representado pelas entidades estudantis não é pago. Bem como o usufruto do direito de meia entrada também não o é. Mas, identificar-se como estudante tem um custo e tal identificação não é dever do Estado. Indo mais além, ao se “comprar” uma carteirinha estudantil o estudante, consciente disso ou não, escolhe sua entidade representativa para ser reconhecido como estudante. Se não o próprio estudante a proporcionar tal identificação, somente uma instituição opressora e que concentra renda é capaz de fazê-lo – como os bancos vem fazendo. É extremamente comum ver instituições de ensino superior distribuindo suas carteirinhas estudantis gratuitamente, pois foram pagas pelo banco que apôs sua logomarca no verso. Já o mesmo não se aplica nas escolas secundaristas justamente por ser a Upes ainda uma das melhores alternativas para o estudante em matéria de identificação.

Após a famosa MP do Paulo Renato, na década de 1990, o estudante tem vários meios de ser identificado a fim de usufruir de seu direito à meia entrada e somente uma é por meio de entidade estudantil. O cinismo é reforçado na ausência de qualquer nota de uma força estudantil como a Kizomba a criticar esses outros meios a fim de fortalecer a carteirinha das entidades históricas dos estudantes.

 O que me deixa preocupado é que o tal do ciclo vicioso não acaba. E todo esforço para que esse ciclo se rompa é facilmente trocado pela lógica da disputa interna do movimento.

01 março 2013

Afinal, o que foi Yoani Sánchez no Brasil?


Há um mês antes da vinda de Yoani Sánchez para o Brasil, Lula, em Cuba, aponta uma valiosa pista para que compreendamos o motivo de tanto faniquito causado pela imprensa brasileira e adversários do governo Dilma. Para o ex-presidente, Cuba tem um significado para todos nós, latino-americanos, até mesmo para aqueles que são contrários à revolução cubana: a força moral construída pelo povo cubano em defesa de sua dignidade e soberania tem que ser respeitada.

Não são poucos os cubanos detratores da socialista Cuba, porém quase todos moram em Miami. Yoani é a primeira, com destaque, que fala de dentro da ilha que trocou uma ditadura burguesa por uma operária. E é esperta a senhora Sánchez, pois diz que fala em nome de toda uma geração - a geração Y, ou a dos jovens que tem Y em seus nomes e que são nascidos nas décadas de 1970 e 1980. Portanto, mais que uma simples blogueira em meio a tantos milhares, o mundo conservador encontrou em "generación Y" uma pequena brecha na tão sólida e respeitada dignidade do povo cubano. 

Por outro lado, há algo em Yoani que não se sustenta. E o elemento insustentável é a própria Yoani. Basta relembrarmos dos incríveis jogos panamericanos de Havana, ou dos 'caliente' jogos de vôlei entre Brasil e Cuba para não conseguir ver Yoani como uma cubana. Todas as cubanas que conheci são extremamente vaidosas, mas diante de uma série de desleixos, é estranho olhar para a cubana Yoani e dizer: é cubana. O estranhamento não para por aí. Uma blogueira ser tratada como chefe de estado justamente pelos veículos de comunicação mais arrogantes da América Latina é algo que provoca por demais a inteligência. Ver o senador Suplicy se lembrar que é membro de uma das mais tradicionais famílias de São Paulo e afagar a blogueira como se ela fosse uma pobre exilada - sendo que não é exilada, muito menos pobre. Falar de democracia e liberdade de expressão ao lado de Caiado e Jair Bolsonaro, então, transborda o bom senso. E vai mais além: é aplaudida com lágrimas nos olhos por Alckmin, o mesmo que se tornou famoso pela sua higienização social e duros procedimentos policiais contra ativistas e estudantes quando ela falava em por fim ao medo de se manifestar.

Então, ao analisarmos os discursos de Yoani publicados em seu blog e nas entrevistas dadas na recepção de O Estado de São Paulo e do Roda Viva, encontramos então mais e mais incoerências. O discurso vai se quebrando com uma facilidade imensa, mesmo em debates armados onde as perguntas eram elaboradas para ela desfilar com respostas contundentes. Se compararmos o que ela dizia com o que a imprensa brasileira falava sobre o que ela dizia, então, a coisa se tornava ainda mais insustentável. 

A ciência política explica com uma facilidade imensa o que aconteceu. Yoani é a representante de uma classe social oprimida em Cuba. Porém, a classe social de Yoani é justamente aquela que oprime a maioria do povo brasileiro. Quando a blogueira se manifesta a favor de maiores poderes para sua classe social em um regime operário, as classes sociais que estão no poder aqui no Brasil, no regime burguês, logo se identificam e justificam em seu discurso a manutenção da opressão do povo trabalhador brasileiro. Como o ensino da cultura e da ciência política no Brasil é sistematicamente combatida para que a opressão da classe burguesa continue sem maiores problemas, a explicação científica fica ainda mais confusa para o público em geral.

No fim das contas, Yoani foi embora e ficou no ar a pergunta: afinal, o que ela queria? Um amigo, sagaz e com uma capacidade enorme para brincar com coisa séria, achou uma boa resposta: ora, ela queria abrir uma lan house em Havana.

Ósculos e amplexos!

14 novembro 2012

Movimentos Sociais e a Ciberpolítica.


Há tempos venho buscando resposta para o debate sobre a comunicação nos movimentos sociais. Desde quando houve uma série de debates e congressos que eu participei enquanto militante do movimento estudantil sobre a crise do movimento secundarista. Esse debate já passou mais de uma década e eu continuava sem uma resposta. E olha que muito procurei. Eis que, completamente descompromissado, fuçando as prateleiras de uma livraria encontro um livro que não me deu as respostas, mas o caminho para a conclusão (Kevin A. Hill, John E. Hughes. Cyberpolitics: citizen activism in the age of the Internet” Rowman & Littlefield, 1998). Curiosamente, o livro foi publicado em 1998, muito antes da chamada internet 2.0. E, bastante visionário, trouxe-me o caminho para as reflexões que tentarei descrever aqui (quem sabe, mais tarde, não vire um artigo). Utilizarei como exemplo o movimento estudantil, mas creio que as situações podem ser aplicadas em qualquer organização política.

Em uma conversa com amigos que ainda atuam no meio estudantil surgiu uma dúvida: qual a importância atualmente do jornalzinho do grêmio ou do centro acadêmico? Praticamente não se vê mais nas mãos de ninguém um papel sequer dizendo o que o diretor, o professor, o coordenador ou mesmo o que os estudantes fazem. Mas, por outro lado, muito mais do que se poderia imaginar, há mais de uma década, já se encontra de tudo com uma riqueza imensa de detalhes disponível na internet para que souber procurar. Inclusive, sobre todos os elementos de uma vida escolar ou acadêmica. São os efeitos da chamada ciberpolítica.

A ciberpolítica, resumidamente, é o uso das novas tecnologias na política. Parte-se do princípio que cada nova tecnologia que se massifica tem um grande potencial político, sendo capaz de promover mudanças na sociedade. Porém, acreditar que uma ação na internet, por si só, pode ser capaz de mudar o mundo soa como um exagero imenso. Afinal, por melhor que seja uma determinada ação política no meio virtual, ela é incapaz de mudar a forma pela qual as tomadas de decisões são realizadas. Ainda que influencie, e muito, ela não transforma. A ciberpolítica é capaz de acelerar ou desacelerar, por algo em evidência ou até mesmo inverter prioridades, porém ela não altera o processo político em si.

Aquele que acredita que a política pode ser inteiramente feita pela internet se engana e se ilude igualmente aquele que acredita que é uma grande bobagem a chamada ciberpolítica. Muito mais que uma técnica de comunicação, o uso da internet é uma estratégia política complexa. O domínio dessa ferramenta consiste em, mais ou menos, na predeterminação de um resultado. Em outras palavras, ao selecionar quais as entradas no meio virtual se espera uma determinada saída – deixando que a surpresa seja no sentido da intensidade, jamais na propriedade. A retroalimentação é base da ciberpolítica. Todos os elementos devem se comunicar entre si, de maneira coerente e constante. Eis o núcleo do processo.

Enquanto o jornalzinho da escola agia como uma espécie de vitrine – onde as informações estão expostas para quem quiser ver – a chamada web 2.0 é inteiramente interativa. E aquele ator político que se pretende atuar na rede mundial de computadores deve pensar de maneira a correlacionar todos os entes comunicativos e fazer com que interajam entre si. Portanto, o jornalzinho da escola estará obsoleto assim como obsoleto é o blog do grêmio. Há a necessidade, portanto, de um verdadeiro ativismo comunicativo. Todas as ferramentas de comunicação devem interagir com todos os que se deseja comunicar. O secretário de comunicação de um grêmio estudantil, que no máximo cuidava da periodicidade do jornalzinho, hoje tem que ser responsável por uma imensa estratégia de comunicação que envolva o jornalzinho, o blog, os blogues de todos os estudantes e apoiadores do grêmio, o facebook, o Orkut, o Twitter, o tumblr, o foursquare, SMS, e tudo o mais que for surgindo e se massificando.

Jamais subestimar a capacidade comunicativa de um meio de comunicação é a primeira regra. Jamais saia utilizando os meios de comunicação sem uma estratégia de comunicação bem definida é a segunda. Ter um discurso de comunicação é a terceira – e que tem que ser o discurso de muitos, não o de um (empowering people).Quarta regra: desenvolva as ferramentas comunicativas e coloque à disposição de todos e todas, livremente e sem medo de críticas (aliás, há sempre uma forte tendência em se querer limitar ou mesmo aplicar uma espécie de censura interna aos membros de uma determinada organização em nome de uma suposta unidade de ação. Ledo engano, é justamente na diversidade de ideias é que surge a unidade – as coisas mudaram muito com a chegada da internet). E, por fim, visibilidade – online e off-line!

Por fim, há um processo que deve ser considerado em matéria política. Todas as ações sociais, em geral, seguem três passos: debate, convocatória e mobilização. No primeiro, define-se problema e estratégia. No segundo, angaria apoios. No terceiro, massifica. Mas, engana-se quem acredita que a ciberpolítica tem maior peso somente no terceiro passo. Tem peso em todos eles, principalmente no primeiro. O debate, com a interatividade online e off-line exigida pelos tempos atuais, exige um número significativamente maior de pessoas para que a estratégia definida ganhe corpo e mais tarde às ruas. Então, respondendo, não é o jornalzinho que se está em crise, mas toda a estratégia de comunicação – que infelizmente, não há uma cultura instituída nos movimentos sociais ainda.

29 maio 2012

Posso desrespeitar, estou “de figas”!


                Em frente à minha morada há um semáforo, mas não há um cruzamento. E a explicação é muito simples: há dois imensos condomínios em uma avenida bastante movimentada que, sem um semáforo, seus moradores não teriam condição nenhuma de atravessá-la. Havia sobre a faixa de pedestre uma lombada eletrônica, porém os motoristas apenas reduziam a velocidade e jamais paravam para os pedestres. A solução urbana foi colocar um semáforo.
                Dizer que ninguém respeita é um exagero. Mas, infelizmente, há uma minoria irresponsável. Sempre que o sinal fecha pelo menos um carro ou uma moto avança o sinal. Os moradores de meu e do condomínio ao lado ainda recebem gesticulações ou mesmo palavrões bastante indecorosos desta minoria sem educação. Curiosamente, o próximo semáforo é respeitado por todos: há um radar para flagrar tanto excesso de velocidade quanto avanço de sinal. E o bairro inteiro conclui: mal educado só respeita o bolso. Como contestar essa sabedoria popular? Questiono a indústria da multa, mas a cada dia defendo mais que deveria ter esses “pardais” em todos os semáforos da cidade.
                Agora, o mais irritante é o famoso sinal luminoso de alerta, vulgo pisca-alerta. Uma espécie de sinal capaz de dar superpoderes a qualquer um que a utilizar. Em minha infância, havia um sinal que permitia descansar sem maiores prejuízos para a brincadeira: dedos cruzados ou, como dizíamos na época “estar de figas”. O pisca-alerta, para muitos motoristas, transformou-se em uma espécie de “figas” para qualquer lei de trânsito. Batas ligar o pisca-alerta e o motorista se considera no direito de parar em fila dupla, subir na calçada, furar o sinal e, pasmem, brigar com pedestre que teima em atravessar na faixa de pedestre e com o sinal fechado para os carros – como o que existe em frente à minha morada, por exemplo. Certo dia, pude presenciar essa cena ridícula. Motorista saindo do carro, gesticulando furiosamente, e dizendo: - “não viu que eu estava com o pisca-alerta ligado?” – falou para o pobre senhor com seus mais de 70 anos que por pouco não fora atropelado.
                Ficou indignado ou indignada? Eu também fiquei. Comecei então a observar quantas “figas” da lei ou do respeito ao próximo estamos sujeitos. E fiquei assustado com o resultado: pior que no trânsito, há uma insistência imensa pelos meios de comunicação de que o humor é “figas” para o respeito. Ou seja, temos que aceitar com naturalidade qualquer coisa desde que ela seja uma brincadeira. Caso contrário, escutaremos um sermão sobre o chamado politicamente correto. Tudo o que machuca, assusta, suja, incita violência, ou ofende não é uma brincadeira, é assédio. É uma lógica estúpida justificar que o humor permite provocar dor, destruir reputações, e até mesmo causar traumas e fraturas irreversíveis.
                Ficamos refém do mal educado motorista, pois não há como denunciá-lo. Ficamos refém dos superpoderes do pisca-alerta, pois podemos ser frontalmente atacados por um motorista perigoso e que se acha cheio de razão. Ficamos refém da baixaria, dos péssimos humoristas, que sem uma regulação dos meios de comunicação não temos como nos defender.